Mais do que um produto de laticínio artesanal



com denominação de origem, saudável e saboroso,



o CATAUÁ, QUEIJO DA MANTIQUEIRA



resgata hábitos seculares de uma civilização rural



que ainda sobrevive nas encostas da



Serra da Mantiqueira






HISTÓRIA DO QUEIJO DA MANTIQUEIRA


O queijo da Mantiqueira começou a ser produzido na região mineira hoje conhecida como Campos das Vertentes ou Vertentes da Mantiqueira no início do século XVIII por imigrantes portugueses, “cristãos novos” oriundos da região do Minho, sendo um queijo de leite cru, com adição do pingo – a última fração de soro que escorre dos queijos – e do coalho. Meu pai contava que o avô de seu avô usava estômagos de tatus lavados e cheios de sal em pedra, mantidos pendurados sobre o fogão de lenha, presos por uma embira ao varal de bambu de onde pendiam lingüiças e postas de toucinho salgado, defumados lentamente pela fumaça de um fogo que quase nunca se extinguia por completo.

No leite cru, “ainda quente da vaca”, vindo das vacas aparentemente mais saudáveis e vigorosas do curral, ordenhadas muito cedinho, os estômagos de tatus eram mergulhados até a coagulação do leite, logo após a adição do “pingo”. A massa obtida era quebrada por uma rústica lira de arame e madeira; separava-se o soro sobrenadante com uma “meia-cuia” de cuité e espremia-se a massa em formas de madeira, sobre uma mesa também de madeira, (sempre lavadas com o soro), com bordas salientes, levemente inclinada no sentido da extremidade em forma de “V”, por onde escorria o soro; depositava-se o sal em pedra sobre a superfície da massa enformada, virada ao final da tarde e novamente coberta pelo sal grosso. Na manhã seguinte, os queijos eram postos a curar em prateleiras de madeira pendentes dos caibros roliços, que sustentavam telhas de barro moldadas nas coxas dos escravos negros e seus descendentes, atenuando a amplitude térmica das queijarias.

Ali permaneciam os queijos num período de cura indeterminado, que variava em função da visita dos “queijeiros”, que os transportavam ao Rio de Janeiro em canudos de taquara trançada, forrados com folhas verdes de bananeira, equilibrados sobre a cangalha das mulas.

Este antigo processo de produção não deixou registros e perdeu continuidade há duas gerações, com o surgimento da moderna indústria de laticínios, que passou a adquirir o leite das fazendas e industrializá-lo em larga escala.

O queijo artesanal da Mantiqueira sobreviveu em pequenas propriedades, geralmente situadas em áreas íngremes e pedregosas, de difícil acesso aos “caminhões de leite”, produzido pela família dos que não tinham qualificação profissional para ingressarem no mercado de trabalho urbano ou simplesmente se negavam a partir, a “sair da roça”.

No início dos anos sessenta o queijo produzido ainda com o pingo, mas já com modernos “coalhos bovinos”, deu origem ao queijo frescal, sem adição do pingo e comercializado diariamente ainda fresco, com alto teor de soro, muito apreciado nas cidades mineiras e fluminenses.

Vale destacar que o “frescal” sempre foi consumido nas fazendas, em finas fatias ou como “raspa de queijo” misturadas ao angu quente, ao mingau de fubá, ou acompanhando os doces da sobremesa. Pelos relatos de meu pai, meu bisavô paterno João Antonio de Ávila assim o consumia ao final do século XIX, cultivando um hábito gastronômico herdado de seus antepassados.

Esta indefinição sobre o teor de umidade dos queijos artesanais da Mantiqueira – que tanto eram consumidos desde frescos, recém saídos das formas, até longamente curados para suportarem viagens em lombo de burro até o Rio de Janeiro – é que torna difícil caracterizarmos o atual queijo artesanal de leite cru da Mantiqueira.

O conceito que ganha força, pouco a pouco, entre as mais de duzentas famílias de pequenos queijeiros artesanais das Vertentes da Mantiqueira é que – independentemente da adição do pingo e do tempo de cura – nossos queijos precisam chegar ao consumidor final garantindo segurança alimentar e “ricos” ao paladar, distinguindo-se da maioria dos queijos industrializados em larga escala com leite pasteurizado. Além disto, nós queijeiros precisamos mostrar ao público consumidor que nosso produto – seja ele fresco, meia cura ou curado – é produzido com respeito à preservação ambiental, questão vital à sobrevivência da humanidade e que se tornou um eficaz “marketing”.

É evidente que, se o queijo fresco, sem excesso de soro – uma preciosa particularidade gastronômica das Vertentes da Mantiqueira – puder ser abrigado no Programa de Legislação / Certificação em curso, terá que ser mantido sob refrigeração, ao passo que o queijo meia cura ou curado não exige refrigeração, artifício que, a meu ver, até prejudica o sabor do “meia-cura”.

A seguir, tentaremos descrever nossa percepção de cada aspecto anteriormente abordado.

A “segurança alimentar” significa que, apesar de cru, ou não pasteurizado, o leite empregado no fabrico de nossos queijos vem de rebanhos sadios, com total controle da aftosa, raiva, brucelose, tuberculose, leptospirose e da “vaca louca”. As três primeiras doenças são controladas pela vacinação, sob orientação e fiscalização do IMA (daí a grande importância do apoio do IMA no processo de legalização dos nossos queijos). A tuberculose pode ser controlada pelo exame periódico e pelo compromisso de não introduzirmos animais não testados em nossos rebanhos, além de sacrificar animais positivos para tuberculose e brucelose, se porventura ocorrer alguma contaminação do rebanho que fuja ao nosso controle.

Cumpre destacar a importância das iniciativas do Dr. Ronaldo Santana, presidente do Sindicato Rural e Secretário Municipal da Agricultura de São João del Rei, entre elas a implantação de laboratório para testes de brucelose e tuberculose na Sede do Sindicato, que atenderá também os municípios circunvizinhos.

O controle da leptospirose é simples, armazenando-se matérias primas de rações em paióis “à prova de ratos” e guardando-se as rações em bombonas plásticas tão logo cheguem às fazendas.

Quanto à vaca louca – a terrível encefalopatia espongiforme bovina, que felizmente não temos no Brasil – pode ser prevenida pela não utilização de componentes de origem animal nas rações, prática proibida e fiscalizada pelo Ministério da Agricultura.

Entendemos ainda por “segurança alimentar” a higiene rigorosa na ordenha e na fabricação dos queijos; a não utilização de ivermectina nas vacas em lactação – por seu temível efeito teratogênico (há fortes indícios de que a ivermectina causa morte e/ou deformação fetal), além de matar a larva do besouro “rola-bosta” – e o respeito ao período de carência dos antibióticos eventualmente usados no combate à mastite.

A importância da legalização do queijo artesanl extrapola os limites dos minifúndios produtores porque, uma vez abrigados num programa amplo de fiscalização pelo IMA quanto ao controle sanitário dos rebanhos leiteiros, estes minifúndios deixarão de constituir focos potenciais de contaminação por febre aftosa, brucelose ou tuberculose dos rebanhos de bovinos de corte, com suas desastrosas conseqüências na exportação da carne brasileira e nos produtos lácteos exportados pelos grandes laticínios nacionais.

Quanto ao sabor, o queijo artesanal deve resgatar o sabor dos queijos produzidos nas antigas fazendas mineiras, o que seria impossível com a pasteurização do leite. Estamos nos inspirando na “escola francesa”, em que se tem total controle sanitário dos rebanhos leiteiro, o que permite produzir queijos extremamente saborosos com leite cru, sem risco de transmissão de doenças ao ser humano.

É também importante que as vacas freqüentem pastagens pelo menos à noite, de preferência pastagens nativas com diversidade de gramíneas e leguminosas. A maioria dos queijeiros artesanais da Mantiqueira adota o sistema de semiconfinamento, em que as vacas comem capim e cana picados no cocho durante o dia, no verão chuvoso, e silagem de milho no inverno seco, sendo soltas no pasto à tardinha, após a segunda ordenha, o que proporciona mais conforto às vacas, diminuindo o stress e permitindo obter um leite mais equilibrado sob a ótica da “alimentação natural”. Nenhum queijeiro artesanal adota o sistema de confinamento total dos rebanhos, comum nas grandes granjas leiteiras.

O respeito à preservação ambiental é muito arraigado entre nós, queijeiros artesanais. Embora a maioria não saiba explicar como está engajada nesta questão, praticamente todos preservam nascentes e matas ciliares, não praticam queimadas e destinam o soro do queijo à alimentação de porcos e bezerras, evitando que cheguem aos cursos d`água, ainda porque o soro doce e não desnatado das queijarias artesanais é um precioso alimento. Já o soro dos grandes laticínios é um efluente que exige tratamento para não se tornar um problema ambiental.

Eu, particularmente, adoto exclusivamente a homeopatia e a fitoterapia no controle de mastites e ecto/endoparasitas e estou firmemente empenhado, como presidente da Associação dos Queijeiros Artesanais, a transmitir o conhecimento destas práticas aos associados.

Finalizando, é imenso o alcance sócio-econômico propiciado pela inserção dos pequenos queijeiros das Vertentes da Serra da Mantiqueira neste Programa de Legalização / Certificação do Queijo Artesanal.

Em nome da AQUAVER, agradeço pela dedicação, competência e sensibilidade com as quais a EPAMIG, EMBRAPA, IMA, EMATER, SINDICATO RURAL DE SÃO JOÃO DEL REI, UFLA, UFSJDR, CEMIG E SECRETARIA DE AGRICULTURA DE SÃO JOÃO DEL REI vêm tratando a legalização do queijo artesanal da Mantiqueira. Este esforço conjunto, certamente, irá muito além da legalização do queijo artesanal, contribuindo significativa e positivamente para resgatar nossa dignidade.


São João del Rei, 28 de setembro de 2007
JOÃO DUTRA