Aquilo era um mar de chifre. Duzentas vaca caracu chegando de madrugada, repletas de pasto nativo e amor pelas crias trancadas no rancho do curral.
Dos úberes amaciados pela baba dos bezerros tirava-se com as mãos um leite alvo e gordo, miraculosamente limpo, que chegava à queijaria ainda quente da vaca.
E era coalhado com estômagos de tatu.
Consigo imaginar meus antepassados trazendo o gado em suas naus, cavando valos e erguendo muros de pedra para subdividir pastos, tecendo cordas de crinas de cavalos, bateiando ouro nos corgos e esculpindo portais barrocos na pedra sabão.
Consigo até imaginar meu bisavô, João Antonio de Ávila, antecipando-se ao Fleming ao perceber a penicilina na terra de formigueiro mofada que dava liga à massa do adobe, pisoteada por pretos velhos que viam secar chagas nas canelas.
Difícil é imaginar como associaram a coagulação do leite aos estômagos de tatu.
Meio século após vivenciar esta prática em Sao Miguel do Cajuru - São João del Rei-MG, produzo queijos com coalho sofisticado, tecnicamente perfeito, com total segurança alimentar.
A criatividade humana se renova e se supera continuamente, sendo a grande esperança da produção social e ambiental sustentável.
Duro é produzir queijos com o mesmo sabor daqueles que se comia nas antigas fazendas mineiras. Não era só o sabor da infância, era também o sabor da simplicidade.
João Dutra